
A LUA QUE NÃO  DEI !  (Cecílio Elias Netto  é escritor e jornalista).
Compreendo pais - e me  encanto com eles - que desejariam dar o mundo de presente aos filhos. E, no  entanto, abomino os que, a cada fim de semana, dão tudo o que filhos lhes pedem  nos shoppings onde exercitam arremedos de paternidade.. E não há paradoxo nisso.  Dar o mundo é sentir-se um pouco como Deus, que é essa a condição de um pai. Dar  futilidades como barganha de amor é, penso eu, renunciar ao  sagrado.
Volto a narrar, por me parecer apropriado à croniqueta, o que me  aconteceu ao ser pai pela primeira vez. Lá se vão, pois, 45 anos. Deslumbrado de  paixão, eu olhava a menina no berço, via-a sugando os seios da mãe, esperneando  na banheira, dormindo como anjo de carne. E, então, eu me prometia,  prometendo-lhe: 'Dar-lhe-ei o mundo, meu amor.' E não lhe dei. E foi o que me  salvou do egoísmo, da tola pretensão e da estupidez de confundir valores  materiais com morais e espirituais.
Não dei o mundo à  minha filha, mas  ela quis a Lua. E não me esqueço de como ela pediu, a Lua, há anos já tão  distantes. Eu a carregava nos braços, pequenina e apenas balbuciante, andando na  calçada de nosso quarteirão, em tempos mais amenos, quando as pessoas  conversavam às portas das casas. Com ela junto ao peito, sentia-me o mais feliz  homem do mundo, andando, cantarolando cantigas de ninar em plena calçada. Pois é  a plenitude da felicidade um homem jovem poder carregar um filho como se  acariciando as próprias entranhas. Minha filha era eu e eu era ela. Um pai é,  sim, um Pequeno Deus, o criador. E seu filho, a criatura bem amada.
E  foi, então, que conheci a importância e os limites humanos... Pois a filhinha -  a quem eu prometera o mundo - ergueu os bracinhos para o alto e começou a quase  gritar, assanhada, deslumbrada: 'Dá, dá, dá...' Ela descobrira a Lua e a queria  para si, como ursinho de pelúcia, uma luminosa bola de brincar. Diante da magia  do céu enfeitado de estrelas e de luar, minha filha me pediu a Lua e eu não lhe  pude dar.
A certeza de meus limites permitiu, porém, criar um pacto entre  pai e filhos: se eles quisessem o impossível, fossem em busca dele.. Eu lhes  dera a vida, asas de voar, diretrizes, crença no amor e, portanto, estímulo aos  grandes sonhos. E o sonho da primogênita começou a acontecer, num simbolismo  que, ainda hoje, me amolece o coração. Pois, ainda adolescente, lá se foi ela  embora, querendo estudar no exterior. Vi-a embarcar, a alma sangrando-me de  saudade, a voz profética de Kalil Gibran em sussurros de consolo:
'Vossos filhos não são  vossos filhos, mas são os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma. Eles  vêm através de vós, mas não de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem.  (...) Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas  vivas.'
Foi o que vivi,  quando o avião decolou, minha criança a bordo. No céu, havia uma Lua enorme,  imensa. A certeza da separação foi dilacerante.. Minha filha fora buscar a Lua  que eu não lhe dera. E eu precisava conviver com a coerência do que transmitira  aos filhos: 'O lar não é o lugar de se ficar, mas para onde voltar'.
Que  os filhos sejam preparados para irem-se, com a certeza de ter para onde voltar  quando o cansaço, a derrota ou o desânimo inevitáveis lhes machucarem a alma. Ao  ver o avião, como num filme de Spielberg, sombrear a Lua, levando-me a filha  querida, o salgado das lágrimas se transformou em doçura de conforto com Kalil  Gibran: como pai, não dando o mundo nem Lua aos filhos, me senti arqueiro e  arco, arremessando a flecha viva em direção ao mistério.
Ora, mesmo sendo  avós, temos, sim e ainda, filhos a criar, pois família é uma tribo em construção  permanente. Pais envelhecem, filhos crescem, dão-nos netos e isso é a  construção, o centro do mundo onde a obra da criação se renova sem nunca  completar-se. De guerreiros que foram, pais se tornam pajés. E mães, curandeiras  de alma e de corpo. É quando a tribo se fortalece com conselheiros, sábios que  conhecem os mistérios da grande arquitetura familiar, com régua, esquadro,  compasso e fio de prumo. E com palmatória moral para ensinar o óbvio: se o dever  premia, o erro cobra.
Escrevo, pois, de angústias, acho que angústias de  pajé, de índio velho. A nossa construção está ruindo, pois feita em areia  movediça. É minúsculo o  mundo que pais querem dar aos filhos: o dos shoppings.. E não há  mais crianças e adolescentes desejando a Lua como brinquedo ou como conquista..  Sem sonhos, os tetos são baixos e o infinito pode ser comprado em lojas. Sem  sonhos, não há necessidade de arqueiros arremessando flechas vivas.
Na  construção familiar, temos erguido paredes. Mas, dentro delas, haverá gente de  verdade?
