Delis Ortiz
Outro dia, ao chegar ao Rio de Janeiro, tomei um táxi. O  motorista, jeito carioca, extrovertido, foi logo puxando papo, de olho no  retrovisor.
-- A senhora é de Brasília, não é?
-- Sim --  respondi.
-- É, eu a reconheci. E como é que a senhora aguenta conviver  com aqueles ladrões lá do Planalto Central? Não deve ser moleza.
O  sujeito disparou a falar de políticos, do tanto que eles são asquerosos,  corruptos... Desfiou um rosário de adjetivos comuns à politicagem nacional.
Brasília é o palco mais visível dessas mazelas e nem poderia deixar de  ser. Afinal, o país inteiro olha para lá. O taxista era só mais um crítico,  aparentemente atento. E ele sabia dar nomes aos bois que pastavam  tranquilamente  no orçamento da união, que se espreguiçavam impunemente sob a sombra da  imunidade parlamentar ou de leis feitas em benefício próprio. E que, de tempos  em tempos, se refrescavam nas águas eleitoreiras.
O carro seguia em alta  velocidade; a distância parecia esticada. Vi uma bandeira três em  disparada.
Lá pelas tantas, quando já estávamos dentro de um segundo  túnel escuro, o condutor falante sugeriu um “dia sem corrupção”.
-- Já  pensou -- disse ele -- se uma vez por ano esses homens não roubassem?
--  Interessante -- a exclamação me escapou aos lábios.
-- Sim -- continuou  entusiasmado --, seria uma economia e tanto.
Nessa hora, me dei conta de  que estávamos percorrendo o caminho mais longo para o meu destino. Chegava a ser  irracional a quantia de voltas para acertar o rumo. Deixei.
-- Os  economistas comentam -- tagarelava ele -- que somos um país rico. Não deveria  existir déficit da previdência, os impostos nem precisariam ser tão altos, o  serviço público poderia ser de primeira. O problema é que quanto mais se  arrecada, mais escorre pelo ralo, tamanha a roubalheira.
Tão observador,  será que ainda se lembrava em quem tinha votado para deputado ou senador na  última eleição? Fiz a pergunta e, depois de algum silêncio, a resposta foi não.  Pena.
Caímos num engarrafamento, cenário perfeito para aquele juiz de  plantão tecer mais comentários sobre o malfeito.
-- Veja como são as  coisas, os riquinhos ociosos da Zona Sul, que deveriam pensar em quem tem  pressa, acham que são os donos do pedaço e vão embicando seus carros, furando  fila, costurando de uma faixa a outra, querendo levar vantagem. A gente, que é  motorista de táxi, tem que ficar atento, porque os guardas estão de olho,  qualquer coisinha eles multam. Mas eles fazem vista grossa para as vans que  transportam pessoas ilegalmente. Elas param onde querem, estão tomando os nossos  passageiros. Como não tem ônibus para todo mundo e táxi fica caro, muita gente  prefere ir de van.
Por falar em “caro”, a interminável corrida já estava  me saindo um absurdo... Resolvi pontuar algumas coisas.
-- Por que o  senhor escolheu o caminho mais longo?
Ele tentou se justificar:
--  É que eu estava fugindo do congestionamento.
-- Mas acabamos caindo no  pior deles -- retruquei. E por que o senhor está usando bandeira três se não  tenho bagagem no porta-malas nem é feriado hoje? -- continuei  questionando.
Ele disse que estava na três para compensar a provável  falta de passageiro na volta. Claro que não, eu sabia.
Finalmente,  consegui chegar ao endereço pretendido. Fiz mais um teste com o “probo” cidadão:  paguei com uma nota mais alta e pedi nota fiscal. Ele me devolveu o troco a  menos e disse que o seu talão de notas havia acabado.
-- Veja como são as  coisas, seu moço -- emendei. O senhor veio de lá aqui destilando a ira de um  trabalhador honesto. No entanto, se aproveitou do fato de eu não saber andar na  cidade, empurrou uma bandeirada, andou acima da velocidade permitida, furou  sinal, deu voltas, fingiu que me deu o troco certo e diz que não tem nota  fiscal!
O brasileiro esperto quis interromper, mas era minha vez de  falar.
-- O senhor acha mesmo que ladrões são aqueles que estão em  Brasília? Que diferença há entre o senhor e eles?
Eu sabia que estava  correndo risco de uma reação violenta, mas não me contive. Os “homens” do  Planalto Central são o extrato fiel da nossa sociedade. Quantos taxistas desse  porte vemos dirigindo instituições? Bons de discursos... Na  prática...
Desembarquei com a lição latejando em mim. Quantas vezes, como  fez esse taxista, usamos espelho apenas como retrovisor para reter histórias  alheias? Nossas caras, tão deformadas, tão retocadas, tão disfarçadas, onde  estão? Onde as escondemos que não aparecem no espelho?
Sem a verdade que  liberta, jamais estaremos livres de nós mesmos. Ainda sonho com um Brasil de  cara nova... A começar por minha própria cara.
• Delis Ortiz é jornalista, repórter  especial da TV Globo, em Brasília. É mãe de Brenda e Bianca, e avó de Gabriel e  Stella. É membro da Igreja Presbiteriana do  Planalto.